11 de abr. de 2012

Carta

Texto: Daniel Russell Ribas
Ilustração: Elis Marina B



 Lu,

 Faz tempos que não nos falamos, seja por mensagem ou ao vivo. Escrevo agora por sugestão de meu analista. E de meus amigos. E de eventuais desconhecidos, que provavelmente mencionaram algo assim ao escutarem passivamente minhas elaboradas dissertações alcoolizadas a respeito de nosso relacionamento e o efeito que teve em minha vida. Até hoje. Na verdade, é uma sugestão antiga, mas que levo a cabo devido aos acontecimentos recentes. Sempre tive muita coisa para lhe dizer, mas nunca tive a coragem. Acho que agora chegou a hora. Não planejei isso, foi uma situação em que a vida me colocou. Você e o dr. House diriam que a culpa por nossas ações está em nós. Gostaria de lhe perguntar ao vivo se ainda acredita nisso. Mas este será mais uma dentre as várias coisas que não farei. Eu lhe vi recentemente. Fiquei impressionado em notar como não tinha mudado nada. Era como se o tempo não tivesse passado para você. Sua beleza permanecia a mesma, assim como o efeito de sua presença em mim persiste. Em meio à tristeza, me espantei ao constatar um sincero alívio de que você não podia me ver. Sei que nunca gostou de homens fracos ou sinais de vulnerabilidade em geral, e também sei que seria incapaz de esconder minha submissão perante você. Quando disse que lhe amava há anos, naquele restaurante, chorei. Você me olhou com misto de constrangimento e medo. Talvez até nojo. Naquele instante, toda emoção se transformou em um ato consciente de conter uma gafe social. Você reagiu a minha declaração como se eu tivesse peidado num elevador cheio de gente e ter me feito de desentendido logo em seguida. Acho que você tivesse me visto ontem teria tido a mesma reação, ou não. Se tem algo que aprendi é que as pessoas mudam no decorrer dos anos. Não me refiro a uma transformação radical, como se fosse um Gremlin, mas a um fenômeno que chamo de “adaptação”. As pessoas se adaptam a novas circunstâncias, sabe? A partir daí, para sobreviver, alguns aspectos de sua personalidade, que se estavam dormentes, surgem com força e outros, que dominavam suas ações, perdem fôlego e recuam. Quando estávamos juntos, me guiava pelo instinto e pelo risco. Acreditava nas possibilidades que apareciam à minha frente como meras consequências de quem eu era, e não de minhas ações. Era como se as coisas acontecessem porque eu as merecia, porque eu havia nascido com um dom, porque eu tinha sido tocado por Deus. Tinha você ao meu lado e toda vida pela frente. Estava errado. Não vou me lamentar, porque sei que nunca gostou disso. Apenas digo que minha “adaptação” me tornou alguém mais racional e inibido. Amargurado, para ser específico. Percebi que não tenho um dom, nem fui tocado por Deus. Era apenas um cara que teve seu momento e, sem perceber, o perdeu. Alguns de nós seguiram adiante, e eu fiquei para trás. Claro que isto não me espanta; só não esperava que fosse acontecer comigo. Mas ninguém espera o inesperado. Daí, o fato de ser inesperado. Você sabia que ia acontecer? Duvido. Para o horror mútuo, passei anos lamentando o fim de nosso relacionamento. Você se afastou, por quaisquer que fossem seus motivos. Soube de um amigo que você achava que a distância “ia me fazer bem”... Você realmente acreditava nesta merda? Sinceramente, você falava tanta merda às vezes que me questionava se realmente acreditava no que dizia ou se estava rindo por dentro. Só digo que fico feliz por nunca ter jogado pôquer com você. Ou melhor: escrevo, porque dizer não adianta mais. Acompanhei sua evolução por anos, nas sombras. Enquanto escutava por conhecidos em comum ou descobria por acidentes sociais, a raiva se tornou sangue fluindo quente em minhas veias me alimentando dando forças motivando. Sua indiferença quanto à minha dor era herética. Estabelecia que meus sentimentos não eram apenas inválidos, mas irreais. Como as pessoas não podiam compartilhar daquela dor, da humilhação? E você, capitaneando a caravana da minha anulação. O que para os outros era melancolia, para mim era luto. Era verdade. Era real. Era sangue quente vermelho. E todos me encarando como se eu estivesse falando de discos voadores e do coelhinho da páscoa. Agora, o tempo passou e, finalmente, estou certo. Não é melancolia mais. É luto. Finalmente, você morreu em minha vida. Também na sua. Você está morta e eu estou livre. Com esta carta, eu lhe mato de vez. Participei de seu funeral para me certificar de sua morte física. Garanti que esta acontecesse quando lhe surpreendi em sua casa e enfiei aquela faca em sua barriga. Admito que temi que tivesse sobrevivido, apesar de observar seus olhos perderem a vida à medida que colocava minha arma dentro de você. Eu sei que, naquele momento, também morri e, mais uma vez, entramos em sintonia. Você abandonando a vida, e eu aquilo que me restava de espírito. Àquele que encontrar esta carta, espero que entenda que tudo o que fiz foi por amor.

 Sinceramente, M.  

Daniel Russell Ribas
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Ele participa do grupo "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro (www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura), é editor da Editora Oito e meio (www.oitoemeio.com.br) e escreve um blog desatualizado (dribas2.blogspot.com). Também participou da antologias "Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1" e "Caneta Lente Pincel" (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra "David Lynch - o lado obscuro da alma". Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea "A Polêmica Vida do Amor" (ed. Oito e meio). 

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