10 de jul. de 2012

Eucaristia

Ilustração: Theo Szczepanski
Conto: Luiz Bras




(mini-romance em vinte e um capítulos)


1

Eu não mastigo raiz de carvalho aquático, você não coleciona selos da Bulgária, ele não tolera crianças de olhos vermelhos, nós não usamos tatuagens mal-assombradas, vocês não sabem esquiar ladeira acima, eles não queimam incenso no oitavo dia da semana.


2

No reunimos no inverno pra beber e contar histórias. Nos reunimos na primavera pra colher lírios e crisântemos. Nos reunimos no verão pra forjar espadas e machados. Nos reunimos no outono pra caçar e honrar os deuses.


3

Jamais tiramos o capuz. Jamais. O negro capuz que, assim supomos, protege de nosso rosto hediondo — uns dizem: sublime — a fauna e a flora circundante. Se hediondo ou sublime, ninguém sabe. Nunca tiramos o capuz.


4

Caçamos tudo o que tem duas pernas, dois braços e doze metros de altura. Os gigantes sonolentos que caem do céu são a maior razão de nossa existência.


5

Eu corro através do desfiladeiro, você prepara o laço, ele distribui as lanças, nós atraímos o gigante, vocês desdobram a rede, eles aprisionam a presa.


6

Conduzimos o gigante até a praça da aldeia. Ele é amplo e fleumático, forte e afetuoso. Poderia nos esmagar facilmente, mas não tolera a violência, não suporta a morte. Por isso foi expulso do céu. Pra fugir da crueldade e do sofrimento que cedo ou tarde esmigalhariam seu esqueleto.


7

Eu abraço a felicidade, você abraça a tristeza, ele chama os velhos e as crianças, nós queremos experimentar novamente o milagre da vida, vocês fazem a presa sentar no meio da praça, eles gritam para o gigante: cante alto, bem alto.


8

Mas o gigante não canta. Não tem ânimo pra cantar.


9

Eu puxo a espada e alfineto a coxa de carne e osso do prisioneiro. Você puxa a espada e alfineta a coxa de carne e osso do prisioneiro. Ele puxa a espada e alfineta a coxa de carne e osso do prisioneiro. Nós rogamos: cante alto, bem alto. Vocês suplicam: cante alto, bem alto. Eles imploram: cante alto, bem alto.

10

O gigante choraminga feito uma criança pequena. Suas asinhas de morcego batem, miudinhas, impotentes. Sua boca abre um pouquinho. Ele começa a cantar.


11

Mas o balbucio arruinado que sai de sua boca parece mais o lamento esfolado de um gato morrendo.


12

Pare, eu rogo. Pare já, você suplica. Pare agora, ele implora. Queremos a canção da outra boca, nós dizemos. É, seu estúpido, da boca secreta, vocês dizem. A canção sagrada, eles dizem.


13

Cem lanças espetam sua coxa de carne e osso e sua coxa mecânica. Ele concorda com um gemido e um aceno de cabeça. Cem lanças param de espetar sua coxa de carne e osso e sua coxa mecânica. Ele aceita o lençol que lhe oferecemos pra assoar o nariz, enxugar a barba.


14

O gigante respira fundo, se concentra. Então a boca pequena se fecha e a grande boca, na altura do estômago, começa a cantar a canção sagrada.


15

A aldeia inteira entra em transe. O fogo de todas as fogueiras atravessa a multidão. Por muito tempo: dois segundos. Depois vem a água de todos os rios, de todos os mares. Uma onda imensa de sabores, cheiros e texturas — cinco segundos — desliga do resto do mundo os pequenos caçadores. Um instante de silêncio, verde silêncio, vitrificada quietude, paralisa os pássaros no céu. Respiração presa. Mais dez segundos. Mãos saboreiam seios, nádegas. Dedos acariciam vulvas, falos. Línguas, essas não fazem nada, pobrezinhas. Nada além de saracotear sob o capuz.


16

A canção escorre pra fora do gigante como lava. De sua garganta, passando pela boca, saem estrelas anãs e buracos negros. Escapam a saudade da infância, o medo de lugares apertados e escuros. Muitas noites quentes e paradas jorram das narinas, dos pulmões. É outono, mas também é inverno, primavera e verão. Bem do fundo do gigante brotam criaturas cor-de-rosa, minam futuros e passados. Os deuses incandescentes que fluem com a lava nós honramos copulando, fabricando a vida.


17

Nós copulamos e copulamos e copulamos e assim honramos os deuses incandescentes que fluem com a lava.


18

Extenuado, o gigante emudece. Extenuados, os corpos se separam. O gozo chega ao fim. O mundo volta ao normal.


19

Eu choro e agradeço. Você abraça a coxa ferida do gigante. Ele convida a multidão a louvar o prisioneiro. Nós louvamos. Vocês pedem a ele que deite. Eles trazem as bacias, os jarros, a serra e os machados sagrados.


20

Esquartejamos o gigante. Sem pressa, começando pelos membros inferiores. Nada deve ser desperdiçado. A cerimônia é lenta e dolorosa. O prisioneiro choraminga, mas não tenta escapar.


21

Antes de serrar seu pescoço, sussurramos em seu ouvido a última despedida. Rápido, rápido, o inverno se aproxima. A aldeia tem fome.

Theo Szczepanski
Suas ideias e referências podem ser visualizadas no tumblr: http://opustheo.com e seu portfolio online em: http://cargocollective.com/opustheo

Luiz Bras 
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato:
 luizbras.wordpress.com


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