15 de jun. de 2015

Comida rápida

Conto: Maíra Valério
Ilustração: André Ducci



Ao lado do Colégio Santos, perto da quadra de esportes do bairro. Sim. Do lado esquerdo. É lá que Soraia estaciona o carrinho. Uma moça baixinha, quase bonita. Muito calada, mas os olhos parecem já ter visto bastante. Faz o melhor cachorro-quente da cidade. Pode confiar, vou lá sempre. O quê? Não, nunca passei mal. A molecada vibra esperando ela chegar. A salsicha é meio durinha, cozida com um molho especial. Mais consistente, engancha nos dentes. Tem que mastigar bastante. O tamanho varia, não sei o porquê. Soraia nunca ri, só quando você pede pra ela fatiar o lanche no meio. É uma moça peculiar: confidenciou-me que estoca a matéria-prima no sótão de casa. Diz que conserva melhor. Pois é, não acabei de falar que ela era peculiar? Passa o dia ouvindo programa policial em um rádio velho de pilha. Ultimamente só rola notícia sobre os rapazes da região que estão desaparecidos. Ahn? É mesmo. Talvez ela esteja em busca de algum namorado perdido. Aparece lá. Ela dá pro gasto. E cozinha bem. Mas ontem ela não foi. Tenta amanhã.


11 de jun. de 2015

Casa Velha

Conto: Daniel Gonçalves
Ilustração: Raro de Oliveira


O acesso ao sótão ficava no quarto, onde eu dormia, quando passava o fim de semana na casa dos meus avós.
Eu deitava, cobria minha cabeça com o cobertor e tentava dormir antes de ouvir os passos descendo a escada. Raramente eu conseguia. A luz do abajur projetava na cama a sombra de alguém caminhando. Nunca tive coragem de espiar quem era aquele que vinha do sótão e saía pela janela.
Na última vez que dormi na casa velha, eu havia acabado de deitar quando minha avó entreabriu a porta do quarto, chamou-me e fez uma pergunta qualquer. Ao respondê-la, percebi que havia alguém atrás da porta, que se fechou antes que eu pudesse me esconder sob as cobertas. Fiquei sentado na cama, olhando fixamente para o vulto:
– Vóóóó! – gritei no auge da agonia.
O vulto aproximou-se:
– O que foi meu querido? Deite-se, você precisa dormir – parecia ela, porém sem os olhos. 




8 de jun. de 2015

Caetanos no sótão

Conto: Fabiano Vianna
Ilustração: Igor Oliver



No começo, quando os primeiros apareceram eu me assustei um pouco. Não é das coisas mais confortáveis do mundo topar com um Caetano passando pela sala em direção à escada do sótão. Alguns, de vez em quando, esboçam um bom dia, boa tarde, ou não. Mas nem todos. Os mais rabugentos até reclamam da altura da televisão. Munidos de violões, tranquilos e infalíveis – como Bruce Lee. Não sei como cabem tantos Caetanos lá em cima. A laje deve ser grossa. Ensaiam canções. E eu, que sempre gostei do silêncio. Pintar aquarela também não dá... Agora eles estão por todos os lugares. Não só no sótão. Na cozinha, no estúdio, sobre o criado-mudo do meu quarto, na geladeira. Devoram as bolachas, fazem café, comem as provisões. Estão pela casa toda. Aqui mesmo, ao meu lado. Acotovelam-se, apertados. Disputam os espaços restantes entre um e outro Caetano. São tantos que eu preciso pedir licença para ver a tela.

3 de jun. de 2015

Cecília

Conto: Rafael Pesce
Ilustração: Daniel Gonçalves




Pela pequena janela circular o sol adentrava naquele sótão. Minúsculas partículas de poeira trafegavam pela luz, como se estivessem sendo abduzidas para o mundo exterior. Uma cama, desnuda de lençóis e sem o ranger das precárias estruturas de ferro, estava localizada logo na entrada. Um pônei de madeira jazia, imóvel, no outro lado, sem ter mais com quem brincar. A caixa de música, que costumeiramente enchia o ambiente de alegria, trancava-se em solidão. As roupas, antes banhadas pela claridade e pelo vento, estavam esquecidas em um velho armário. Os brinquedos, jogados de forma aleatória, tornavam o chão irregular. Mas no centro de tudo estava ela, Cecília, abandonada pela vida e pela sanidade do pai, que a deixou na escuridão daquele baú.