10 de jun. de 2014

Viúva Negra

Conto: Eduardo Capistrano
Ilustração: Fabiano Vianna


No começo do trabalho, quando tinha as barbas ainda escuras, gostava de admirar as viúvas à distância. Os traços vagos por trás dos véus, a roupa preta justa marcando as ancas, as lágrimas borrando a maquiagem e vertendo como pingos negros sobre os colos brancos, para serem chupados pelos ágeis lencinhos, os chorinhos escapando pelos lábios entreabertos, grossos de batom...
Quando deixou de ser um ajudante, que só cuidava das ferramentas e alças para içar caixões ou de concretar os caixões sob as tampas de cimento, passou a participar das inumações. Sozinho, adiantava-se à chegada dos enlutados e quebrava o rejunte das lajes, abria os caixões, ensacava os ossos (embolsando qualquer joia ou roupa que algum colega ainda não tivesse surrupiado), limpava a cova da terra e da sujeira e a deixava pronta para o novo defunto.
Escolhia então um ponto estratégico, que lhe desse plena visão dos familiares. Geralmente sabia de antemão se havia uma viúva, pelos agendamentos das capelas ou espionando os velórios. Aguardava até a chegada do caixão, pelos braços da família, e então o colhia com seus colegas e o colocavam cova adentro. Sem uma viúva, deixava os trabalhos naquela hora, para os colegas terminarem.
Mas se houvesse uma viúva... As mãos enluvadas de Erasto apertavam o cabo da pá, os olhos fundos nas órbitas apertados sob o sol, escuros pela aba do boné, enquanto o suor escorria pelas suas têmporas, e ele molhava os lábios sob os bigodes grisalhos. Alcançava a cova passando o mais próximo possível da enlutada, para sentir seu cheiro. Então entrava na cova, apesar da barriga, e a cada abaixada para encaixar o caixão, para pegar uma pazada de terra, para pôr uma tampa no lugar, para aplicar cimento entre as tampas, dava uma olhadela nas pernas da viúva, e acima o quanto a saia permitisse.
À noite, pagava homenagens ardorosas, ainda que não muito respeitosas, à viúva.
Então morreu um certo doutor respeitável da cidade. Erasto foi chamado do plantão e ao chegar ao cemitério, os colegas já haviam aberto a cova e deixado tudo pronto. Resolveu dar uma espiadela no velório e estremeceu ao ver quem era a viúva. A mulher era uma visão gravada a fogo na memória de Erasto. Estivera ali, naquele mesmo cemitério, também enterrando um marido, anos antes. Na primeira vez que a vira, ela estava na meia-idade, e durante o enterro percebeu os olhos de Erasto a desnudando. Pensou vê-la sorrir, por trás do véu, e aquilo o deixou maluco.
E agora ela voltava, mais um marido morto. Agora mais velha. Erasto adorava as velhotas.
Mal podia esperar a hora do enterro. O caixão chegou, mas faltava a viúva. O confuso coveiro deu andamento ao trabalho, entreouvindo que a viúva havia passado mal, mas viria depois. Erasto quebrou o silêncio a que estava acostumado e perguntou se deveriam esperar. A família disse que não, que a viúva havia pedido apenas que não fechassem o túmulo completamente até ela chegar. Erasto colocou o caixão e lançou a terra, mas nada da viúva.
Escureceu, a família deixou o local, pedindo que esperasse pela viúva. Ele esperou, esperou, dispensou os colegas, falando que esperaria sozinho.
Minutos depois, viu a viúva se aproximando. Andava um tanto apressada, olhava por sobre o ombro. Erasto sentiu calafrios, sensação da qual nem mais lembrava o nome.
A mulher deteve-se diante do caixão no fundo da cova aberta. Com dois dedos, ergueu a saia pelos lados e desceu a calcinha até o chão. Arremessou a calcinha no rosto de Erasto, e quando ele a tirou do rosto, a viúva já deitava de costas sobre o caixão, desabotoando a camisa, abrindo as pernas, chamando-o com o dedo.




Eduardo Capistrano
Nasceu no ano de 1980 em Curitiba, Paraná. Bacharel pela Faculdade de Direito de Curitiba. Contista desde 2002, publicou “Histórias Estranhas” (contos, 2007), “A Quarta Dimensão” (contos, 2011) e “Adolpho Werneck: Vida e Obra” (bibliografia, 2012).  

http://edcapistrano.blogspot.com.com
  
Fabiano Vianna
Nasceu em Curitiba, em Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela PUCPR. Trabalha como designer, ilustrador, roteirista e escritor. Desde Abril de 2013 participa dos coletivos “Croquis Urbanos Curitiba” & “Criaturas Crônicas” – grupos que saem para desenhar e descrever a cidade in loco.
http://polpacomleite.blogspot.com
http://be.net/fabianovianna


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